“CERCINHO É LÔCO!”

CERCINHO É LÔCO!”
A propósito de uma briga de galos em Ibitinga
Luiz Francisco Fernandes, Pelanca


Passava das oito quando meu pai e eu passamos para apanhar Eliseu em sua residência.
Britânico no horário, o olhar de repreensão de Eliseu sinalizava advertência; o sol já ia
alto e - era o que o olhar de Eliseu dizia - aquela não era mais hora de galista viajar para
exibir aves crioulas (de criação do galista) fora dos limites de Matão.
Os melhores galos, todos caprichosamente treinados durante a semana, Eliseu garantia,
estavam na ponta do casco; a raça selecionada por meu pai Humberto, pelo porte
efeminado que as aves exibiam ao adentrarem a rinha, ganhara o emblemático apelido
de 'Doninha', e duas delas, que Eliseu selecionara nas escorvas (treinamentos), já
estavam devidamente agasalhadas e prontas para a viagem - vestiam uma capa grossa
de seda as da cabeça às coxas que as protegia da coriza e as consideradas “tiros”
(boas de briga e certeiras na espora) viajavam acomodadas no colo de Eliseu que
aproveitava o tempo da viagem para com paternal carinho massageá-las da cabeça
às pernas que tosquiara na véspera.
Segundo Eliseu, as aves conhecem seu tratador e no embate sabem o que é preciso
fazer para agradá-lo. Era a filosofia galinácea de Eliseu, conhecido por Pezão em
todos os redutos de briga de galos; poucos criadores, treinadores, tratadores e
puxadores de galos de combate tiveram mais êxito do que Eliseu no cultivo e incentivo
à criação de aves belicosas, do galo índio como eram identificados. Até o último
minuto do embate, Eliseu procurava conferir as melhores condições físicas para o
galo que puxava continuar firme na briga. Um mestre, fez-se conhecido e admirado
em todo Brasil. Certa vez, em Fronteira, MG, sob o olhar de admiração dos circundantes,
o também galista De Sordi, titular e depois reserva de Djalma Santos na Copa do
Mundo de futebol em 1958, levantou-se e todo sorrisos veio cumprimentá-lo e
dizer que se a CBD promovesse briga de galos, ele, Pezão, seria o técnico!
Chegamos a Ibitinga por volta de dez horas.
Inúmeros embates já estavam emparelhados (brigas ajustadas entre galos de mesmo
peso e altura), não sem antes os galistas desencadearem uma prolongada e nervosa
'bicação na boca' (provocação entre criadores e puxadores para fazer o eventual
adversário perder a esportiva e, de raiva, aceitar o emparelhamento mesmo em
condições desfavoráveis). Entretanto, pouquíssimas vezes a malandragem do
‘bicar na boca’ lograva prevalecer; o galista apenas fingia se deixar levar pela
provocação; na realidade, pelas características de briga do galo, algumas vezes era
de 'bom tamanho' emparelhá-lo alguns centímetros abaixo do oponente; mesmo
brigando por baixo, alguns galos desenvolviam uma destreza natural para prender
o bico com mais eficiência no corpo do oponente; posicionando-se na briga por
baixo, apuravam a pontaria para desferir as esporas na exata direção do “morredouro”
inimigo. 
Na gritaria que se alongava por duas e até três horas, põe os galos na balança, estende
a régua, aceita e não aceita o valor do 'ativo' da briga (valor apostado entre os donos
das aves), seguiam infindáveis jogos e mais jogos de cena, xingamentos recíprocos,
simulações de brigas por excesso de ofensas, tudo malandramente calculado para
atingir um único desejo:  ver as aves na rinha prontas para a batalha e os circundantes
a lançarem apostas aos gritos frenéticos que iam da rouquidão à afonia, como era
habitual com o matonense silvanense Niquinho Gazoni; quando provocado, não
havia ninguém de peito e coragem para duelar com ele no gogó; bastava “bicá-lo
na boca” para o desafiador tomar o revide e calar-se logo em seguida. Alma generosa,
diante de qualquer provocação, Niquinho se transformava ‘num bicho’ ao derredor
da rinha, e, dai em diante, coitado de quem se atrevesse a levar adiante a discussão
sobre o destino das aves, antes ou durante a briga. A ave pela qual Niquinho torcia
podia perder o combate; ele, porém, jamais perdia a troca de insultos com algum
incauto que ousasse provocá-lo. 
Certo dia os rinheiros se fartaram de tanto rir com uma sacada genial de Niquinho;
alguém apareceu com um galo cujo fraco cartel de desempenho era tão sabidamente
conhecido que até seu dono o trouxera à rinha imbuído do propósito de apostar
contra a própria ave; por sua conta e risco e vendo que ninguém se animava a torcer
a favor da desprezada ave, nem o próprio dono, contrariando conselho de amigos,
Niquinho escasquetou que o pobre galo, mesmo mal emparelhado e prestes a perder
a briga, dele merecia dele um gesto de solidariedade e consideração; e mal começara
a retrucar os insultos e numa rebatida de esporas de pura sorte o galo da “adoção”
de Niquinho baixou ao chão o adversário. Diante do inesperado resultado, emocionado,
Niquinho encarou bem de frente o dono do galo e, numa voz aguda de aprofundar
tímpanos, sentenciou:
- Precisava de alguém aqui para dar força pro seu galo, seu polenta covarde,
não tem vergonha, siô, torcendo contra o próprio patrimônio, me fala o preço
que compro já essa ave que tem mais coragem que o dono! 
Aconteceu numa domingueira em que os ovíparos combatiam em Silvânia nos
pagos de Terige, e ainda tenho vivo na memória o rebu que virou depois do esculacho
que Niquinho impôs ao galista desnaturado; só não deu polícia graças à eficiente
intervenção da turma do deixa disso.
Mas retornando ao relato do início, o torneio aconteceria num velho sítio em Ibitinga
que em tempos idos pertencera à família de um ex-prefeito da Capital do Bordado.
Celsinho, Nagib, Guerininho e Terige chegaram mais cedo; a bordo de seu Corcel
grená, Guerininho transportara os quatro.
Lá chegando, a surpresa de duas presenças inesperadas! Bem mais cedo, talvez
antes de amanhecer ou na véspera, o pai de Celsinho, Celso Assumpção, e Silvio
Malzoni já estavam aboletados ao derredor da rinha; ambos se deleitavam em
apreciar e avaliar o estilo de combate e a qualidade das aves e prognosticar resultados,
sem contudo lançar nem colher as ofertas de aposta.
Às brigas mais concorridas era reservado o horário noturno e somente após as
dezessete horas é que os galos dos criadores mais bem reputados começavam a
emparelhar; algumas vezes as aves eram trazidas por terceiros e não por seus donos;
estes preferiam vir mais cedo para certificar-se da presença ao local de eventuais
rivais, em especial os de fama nacional, como Pezão, o ex-toureiro Diabo Loiro,
astro da famosa tourada de pano vermelho que o tropeiro Castorino promovia
próximo à antiga Capela da Vila Santa Cruz, e, vindo de Piracicaba, o campeão
do mundo De Sordi, reconhecidos e respeitados como criadores das melhores
estirpes de galos de combate.
A certa altura tive a impressão que as possibilidades de emparelhamento para os
combates mais renhidos tinham se esgotado; muito cedo, De Sordi anunciou sua
retirada da rinha e o retorno à hospedagem em casa de amigo, ali mesmo em Ibitinga.
Quando o desânimo parecia dominar o ambiente, ameaçando encerrar a concentração,
eis que um inopinado Celsinho Assumpção aparece no centro da rinha, toma das
mãos de outra pessoa um galo já calçado de esporas e, esvaído no entusiasmo do
galista que não admite ausência antecipada sem um combate apoteótico, levanta-o
até a cumeeira da rinha (na realidade, o galo era crioulo do Celsinho e o disfarce
fazia parte da astúcia tática que às vezes nem os mais íntimos galistas de Matão
conheciam; porém, como se verá mais adiante, no entusiasmo da contenda, o próprio
Celsinho acabou revelando o disfarce) e, em tom desafiador, provoca:
- “Se tem homem aqui que acha que seu galo vale alguma coisa, aqui tá uma
penosa mansa, no ponto certo de ser tocada” (na comunicação dos galistas,
“tocar” tem o sentido de fazer o outro galo correr da rinha em desespero; é uma
das maneiras de “morder na boca”).
Um ibitinguense já meio alto, não suportando a “mordida, mandou seu tratador
retirar da gaiola um galo que ali todos sabiam ser “tiro” e um dos mais temidos
da concentração.
- “Cê fala assim, Celsinho, porque nunca teve e nem sabe o que é um verdadeiro
galo de briga, porque nunca possuiu galo de categoria!”
Era tudo o que Celsinho queria ouvir; conseguira, finalmente, fazer a mordida
colar ao oponente e, não de todo satisfeito, levou mais adiante a provocação.
- “E tem mais, pessoal !” - palmeando o galo até a crista tocar a viga do teto
depois de respirar fundo. “... e tem mais! Se essa ave aqui não tocar aquele
mestição ali até os quarenta e cinco minutos...” -  e apontando na direção do
oponente -  “pago a minha aposta e as apostas de todos vocês que vieram aqui
pra assistir briga de galo e não pra ver briga de galista preá!” (“preá”, gíria
atribuída ao criador de aves de pouca qualidade para o combate).  
Dotados de boa experiência de puxadores de galo, Celsinho apenas dispunha
de Pezão e Odorico. Mas de pronto dispensou Odorico ao perceber seu visível
nervosismo (o galo fora treinado por Odorico e a emoção do treinador poderia
prejudicar o puxador, avaliou Celsinho, que, ainda mais pândego e gozador,
continuava a exagerar nos trejeitos diante de um adversário irritado e uma
plateia já sufocada em incontido delírio).
Um despertador comum era dependurado no topo da rinha e o juiz - o criterioso
Machado de Araraquara -  seguia por ele o tempo da briga. Mal despertava e os
dois puxadores pulavam céleres dentro da rinha, retiravam as aves e as levavam
para o refresco (um banho de corpo inteiro para aplacar a canseira e curar eventuais
feridas).
Acalmado o vozerio de apostas, o fleugmático e enérgico árbitro Machado ordena
aos dois puxadores a lhe trazerem as aves para o exame de couro e esporas - o de
couro para verificar se as faces e o corpo dos galináceos estavam escorregadias,
fraude que dificultava o galo de prender o bico no outro, e o exame de esporas para
aferir se o tamanho era o regulamentar.
Mal iniciado o combate, as aves ainda “se estudando” uma à outra nos dois primeiros
minutos e logo o abusado Celsinho já colocava os apostadores em polvorosa ao
ouvirem dele, aos berros: “... e tem mais pessoal, vocês viram aí, em menos de dois
minutos, “meu” galo tomou duas perto do morredor; mas não tem nada, não! por
conta dessas duas esporadas no meu galo, vou dar dobrado pra vocês todos, e não
sou eu que vou fazer o limite do que vocês vão querem apostar!” (a expressão
“morredor” se explica por si mesma e “dou dobrado” significa que se o galo
em que apostou, perder, o apostador que deu dobrado terá que pagar ao outro
o dobro do valor apostado).
Terminou o primeiro round, entrou o segundo, iniciou o terceiro e nada de o galo
de Celsinho reagir; entretanto, mesmo exausto e o corpo inteiro esporeado,
apresentava-se “inteiro” na briga, parecendo estar contaminado pela ousadia do dono.
Até que veio o quarto e último round!
Muito antes, porém, o silêncio que tomara conta da assistência lembraria o de
cemitério não fosse o espanto que envolveu os circundantes ao ouvirem novamente
a voz altissonante e desafiadora de Celsinho, quando mais ninguém duvidava que
o galo perdedor só poderia ser aquele a favor do qual o dono continuava a aceitar
todas as ofertas de apostas.
Eram decorridos quase dez minutos do derradeiro quarto da luta e o galo de Celsinho
se mantinha vivo mercê apenas de sua incrível capacidade defensiva; apesar do
empenho de Pezão durante os intervalos de refresco, as muitas esporeadas que
recebera do oponente só não eram mortais porque, embora completamente exausto
e quase “sem pernas, o galo de Celsinho ainda encontrava forças para levantá-las
na altura de aparar as deletérias investidas do adversário.
Dali mais três ou quatro minutos do final da briga os apostadores iriam explodir
em euforia.
Isso mesmo, explodir, e sabe por que ansioso leitor?
Porque na metade daquele quarto final do combate, Celsinho resolveu
quebrar o silêncio que voltara a tomar conta da rinha para novamente apregoar
em alto e bom som: “quer saber de uma coisa moçada, ceis tão vendo que o meu
galo mal consegue parar em pé; então só por isso resolvi dar outra colher de chá
a vocês: se essa briga empatar, eu pago a aposta mesmo pra quem jogou que meu
galo perdia!”
Foi nessa hora que o pai de Celsinho, Celso Teixeira Assumpção, voltou-se para
o amigo Silvio, única pessoa com quem reclamara dos extravagantes ímpetos do
filho, e mandando às favas a discrição e a paciência que a custo mantivera até ali
desabafou num carregado sotaque de Tietê: “não te falo, Sirvio, Cersinho não
tem jeito”; e, elevando a voz, irritado: “SIRVIO, CERSINHO É LÔCO!”
A dois ou três minutos do fim, todos os olhares se alternavam nos galos e no
despertador prestes a denunciar o final do combate.
Entretanto, tomado por uma empolgação que não poderia provir de outra motivação
senão do silêncio que voltara a descer sobre os espectadores, e parecendo não
satisfeito com todo o impacto que já havia provocado, num átimo de enlevo lúdico,
Celsinho decidiu superar-se a si mesmo e, com a voz já roufenha, porém suficiente
para fazer ressoar por toda a rinha, clamou: “e tem mais, moçada; pago todas
as apostas de roda” (de toda a rinha)se antes do tempo” (do tempo da briga)
“meu galo não tocar esse xaréu” (galo de má qualidade) “que até agora só bateu,
bateu, e não teve capacidade pra tocar minha ave, sem perna e sem gás!”
Era o que todos diziam depois que a briga acabou. Que mesmo trôpego, o
galo de Celsinho ainda parecia ter ouvidos para os desafios e provocações
do dono, quando, a segundos do final, levantou as pernas o quanto lhe permitia
a réstia de forças que ainda tinha cravando as duas esporas certeiras no peitoral
adversário.
Foi o momento em que a estrepitosa vozeria virou silêncio de necrópole.
Em visível transe, Celsinho mergulhou - e com ele, cigarros, isqueiro, carteira,
caneta e anotações de apostas, foram para dentro da rinha; ao levantar-se,
empalmou ao píncaro seu gladiador de penas e mais uma vez possuído de
incontrolável euforia, a ave vencedora elevada por seu dono sob o aplauso
estrondoso de uma platéia em frenesi, ainda mal crendo no que acabara de
testemunhar, outra vez Celsinho decidiu superar-se a si próprio e, sem ao menos
tocar no galo que jazia num canto da arena, num enlevo desafiador inacreditável,
lançou aos berros:
- “E tem mais, moçada; eu pago o mesmo valor das apostas que ganhei se
esse xaréu não tiver morto!   
Para regozijo de dois ou três, foi o que constatou logo em seguida o puxador.
A contenda daquele dia não foi e jamais poderia ser igual à de outros dias. 
No entanto, nem por isso Celsinho esqueceu do célebre bordão que habitualmente
apregoava ao final das brigas em que seu galo vencia: “pagamento na fazenda, moçada!”
Não saberia explicar, mas é com essa expressão que meu cérebro ainda evoca
o timbre da voz de Celsinho, o presidente mais festeiro e festivo de nossa querida Sorema.

(dezembro, 2019)

"A Liderança Popular na Política de Matão - Laertão e Adauto" - fatos cronológicos

"A Liderança Popular na Política de Matão - Laertão e Adauto" em edição. conforme os capítulos forem escritos, postaremos aqui.